CAUSOS



“Causos” do José Félix do Araguaia por Reynaldo Duarte, o pescador “Sogrão”

José Félix de Morais, JFM como ele mesmo se intitulava, homem humilde e simples porém hospitaleiro e que acolhia com um café e boa prosa a quem quer que chegasse à sua casa. Pouca cultura porém muita sabedoria. Cultivava apenas dois dentes na arcada superior nos quais uma passada de língua entre eles para lá e para cá e uma chupadinha estridente era o tempo de que ele precisava para arquitetar uma de suas mentiras.

Desta forma descreveu-nos JFM a mim e ao eu meu genro Ricardo, o nosso piloteiro José Corrêa lá pelas barrancas do Araguaia quando de nossa pescaria em Luiz Alves, Goiás, em junho de 2006.

Vou transcrever alguns dos “causos” contados pelo nosso personagem, hoje, infelizmente, paralítico em virtude de um derrame. Acredito que não conseguirei transmitir com a mesma hilaridade os “causos” e mentiras que nos foram narrados pelo nosso piloteiro, primeiro porquê não conseguirei comunicar-me no sotaque e no linguajar nos quais ouvimos as histórias e, em segundo lugar, porquê procurarei esmerar no Português não cometendo gafes ou erros grosseiros. Perdoe-me, portanto, caso cometa algum erro e não atenda à expectativa dos leitores.

E assim, foi-nos narrado...

“Causo” 1 – O maior mentiroso do Araguaia!

Estava JFM na praça em São Miguel do Araguaia e, bom de papo, puxa uma prosa com um desconhecido. Dizia ele:
- Pois é, seu moço, eu sou pescador e já fisguei sete pirarucus, já matei paca, tatu, cinco jacarés, uma anta, três onças pintadas e outros bichos que nem dou mais conta.
Quando desconhecido perguntou:
- Sabe com quem o senhor está falando?
- Não, porquê?
E o desconhecido:
- Eu sou fiscal do IBAMA!
- E o senhor sabe com quem está falando? Eu sou José Félix de (leia-se dê) Morais. O maior mentiroso do Araguaia.

“Causo” 2 – Motor bastante econômico!

De outra feita, foi o José Félix de Morais da Ilha do Bananal, onde morava, até Luiz Alves fazer compras. Cumprida a tarefa, depositou as mercadorias adquiridas no posto de gasolina e foi para um boteco. Proseou bastante, tomou todas as que tinha direito, pegou a canoa, passou pelo posto, embarcou as mercadorias e abasteceu o tanque do motor. Tinha ele então um motorzinho rabeta de 3,5 hp.

Todas as providências tomadas, pôs-se ele de volta para a ilha acerca de 70 km. A uma distância de 500 metros da Ilha, o motor arou de funcionar. Encabulado, coçou a cabeça, passou a língua entre os dentes, deu a tradicional chupadinha e ficou confabulando consigo mesmo: “Uê, porquê parou o motor? O que está errado? A gasolina sempre deu para chegar em casa! O que aconteceu hoje? Foi quando ele viu que torneirinha de combustível (semelhante à de moto) estava fechada.

Passados alguns dias, de volta a Luiz Alves, entre uma cerveja e outra, comentou com os amigos: “Êta motorzinho bom e econômico. Fui daqui à Ilha só com a gasolina do carburador!”.

“Causo” 3 – Motor a boto!

Precisava o José Félix de Morais ir a São Félix do Araguaia que distava aproximadamente 300 km rio abaixo de onde residia. Não tinha ele motor. Embarcou com seu filho Jeová, benzeu-se, rezou e começou a remar rumos ao seu destino.

Conta ele que havia já remado mais ou menos 70 km, quando passou um barco com um motor de 25 hp. Pediu carona ao piloteiro que apenas acenou e se foi.

Mais 30 km abaixo, pediu ao seu filho Jeová:
- Jeová, meu “fio”, arpoa um boto aí por que eu estou cansado. Não agüento mais remar.

Assim dito, assim feito. Arpoado o boto, continuou:
- Segure firme a groseira (corda) que vou aqui ao leme.

E o boto rebocou o barco rio abaixo.

Descendo mais alguns 50 km, lá vai o barco com o motor de 25 hp.
- Desta vez fui eu, disse o José Félix, quem deu tchau para o piloteiro, quando passamos por ele.

E, continuando o boto desembestado rio abaixo, foi quando o José Félix deu conta e falou alto:
- Jeová, meu “fio”, corta a groseira. Olha aí a placa! Já estamos em Belém do Pará...


“Causos” do João pelo pescador Carlinhos

Tento aqui reproduzir um dos causos que li em um livro que ganhei há muitos anos e que, infelizmente, emprestei para um “amigo” que não me devolveu.

O autor narra diversos causos de pescadores lá pelos idos dos anos 30, quando ainda se amarrava cachorro com lingüiça, quase não havia estradas asfaltadas em Minas Gerais e o rio São Francisco ainda era repleto de enormes surubins e dourados.

Tratarei o personagem pelo nome de João. Caso alguém tenha lido o original, perdoe-me por não me lembrar de muitos detalhes, mas procurarei ser o mais fiel possível à essência.

"Causo" - Sei lá!

Era setembro. João, muito falador e brincalhão, com mais oito companheiros ajudava a preparar mais uma de suas pescarias para as barrancas do São Francisco.

Ficariam acampados por 15 dias às margens do rio, em uma fazenda próxima a Pirapora (aproximadamente 350 Km de Belo Horizonte), que por diversas vezes os havia acolhido.

A “jardineira” ficou lotada. Barcos, motores, iscas, muito sal para salgar os peixes, e todas as tralhas de cada um.

Dois dias de viagem, muitos pneus da “jardineira” furados e alguns problemas mecânicos, chegaram finalmente ao seu destino.

A recepção do grupo não poderia ser melhor. Vinham de Belo Horizonte, a capital, e os moradores da região logo apareciam no acampamento, pois traziam muitos presentes para eles, inclusive cobertores e alimentos. Para a molecada não havia coisa melhor.

No dia seguinte, ficaram por conta de montar acampamento, preparar os barcos, organizar toda a estrutura que trouxeram e descansar para começarem a pescar no próximo dia. À noite, fogueira, viola, e muita comida (sabiam que a molecada estaria ali para dividir com eles).

João, depois de umas e outras, resolveu amedrontar as crianças com uma estória de arrepiar. Seus companheiros também ouviam e fingiam ser tudo verdade, evitando risos para não estragar a brincadeira.

Contava João que determinada vez saiu para pescar sozinho à noite. Noite de lua nova, rio silencioso e muita escuridão, uma pequena lanterna à mão, conseguiu apoitar embaixo de uma enorme árvore, uma ingazeira. Ouvia o barulho de alguns animais, provavelmente macacos Bugios, iscou seu anzol com um pedaço de minhocuçu, e sentou-se no barco. De repente, começou um vento forte, a água do rio encrespou, os galhos da árvore começaram a se curvar e o barco começou a balançar. A coisa começou a ficar complicada, com a ventania ficando ainda mais violenta e jogando água para dentro do barco. Resolveu ir embora, recolheu rapidamente a linha lançada ao rio e foi retirar a poita. Quando ligou a lanterna para pegar a corda da poita, viu uma enorme mão peluda segurando-se a ela. Era um caboclo d’água.

A molecada atenta e com os olhos arregalados, prestava atenção a tudo que João dizia e à forma como gesticulava.

Desesperado, pegou um facão e desfechou um golpe certeiro naquela coisa. Ouviu um imenso urro, a corda se partiu e um dos dedos peludos acabou caindo dentro do barco. Ligou rapidamente o motor, e com o coração disparado, livrou-se rapidamente daquela situação voltando para o rancho.

Os companheiros de João mal estavam conseguindo se conter em gargalhadas, mas a molecada ficou apavorada. Foram todos para suas casas e a turma de pescadores pode regozijar-se com mais uma do João.

A pescaria estava ótima. Muitos peixes e muita diversão.

Certo dia, já bem à tardinha, João resolveu sair sozinho com o barco.

Motor ligado, foi subindo o rio passando próximo à margem.

A escuridão já se fazia presente. Apoitou embaixo de uma árvore, iscou um anzol com um pedaço de minhocuçu, lançou a linha no rio e sentou-se no barco. Ouvia o barulho de animais. Um forte vento começou de uma hora para outra, o rio começou a ficar cheio de marolas e o barco começou a balançar. Foi neste instante que João começou a prestar atenção na situação que estava envolvido. Tudo que acontecia ao seu redor parecia exatamente como um filme da estória que havia inventado para a molecada. A árvore era uma ingazeira, o barulho era de Bugios e as demais circunstâncias eram coincidentes.

Recolheu rapidamente a linha lançada ao rio, puxou a poita, ligou o motor e saiu em disparada pensando: Eu Heim!! Sei lá!

 

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